TASCA DA ESTAÇÃO

16.6.05

Álvaro Cunhal

Morreu outro homem de causas. Quando escrevi este post sobre Arafat, escrevi-o a pensar em Álvaro Cunhal. E fui sempre pensando no que escreveria quando este momento, que se adivinhava próximo, chegasse. Cunhal sacrificou a vida inteira em prol da causa comunista. Lutou por ela e acreditou nela de tal forma que nem com a queda do Muro e o colapso da URSS alteraram as suas convicções. Também, seria porventura demais pedir-lhe isso. Não deve ser fácil lidar com o desmoronar de tudo aquilo por que se sacrificou uma vida inteira. A amargura que sentiu nestes últimos 15 anos apenas podemos imaginá-la. A vida ascética que levou, e os sacrifícios por que passou podemos conhecê-los com algum detalhe, por exemplo graças a Pacheco Pereira e à sua ?Biografia Política?. Como já escrevi, nutro particular admiração por este género de pessoas, que põem uma causa acima da própria vida. No caso de Álvaro Cunhal, soma-se a isso o facto de ser um personagem extremamente interessante, a todos os níveis.

Por isso, avaliar Álvaro Cunhal pelo que ele fez nos últimos 30 anos, ou pior ainda, entre 1974 e 1975, é extremamente redutor. Cunhal foi muito mais do que isso, para bem dele e do país. Cunhal foi durante décadas o principal rosto da resistência ao fascismo (embora haja quem defenda que Salazar não era fascista*). Apesar da concepção de liberdade que Cunhal tinha não fosse exactamente a que eu tenho, o facto é que foi ele e outros como ele que lutaram e sofreram a bom sofrer para que eu e outros como eu hoje estejamos a viver numa democracia. Sim, foi a esquerda quem se opôs e lutou activamente contra o regime. É, pois, à esquerda (e a um grupo de militares descontentes) que devemos a liberdade. A direita, essa, vivia no interior do regime e à sombra deste (Sá Carneiro, por exemplo, foi deputado à Assembleia Nacional), porventura esperançada, mas aparentemente sem se esforçar muito, que o regime mudasse e acabasse por evoluir para uma democracia. De resto, as suas virtudes democráticas só se tornaram públicas com o 25 de Abril (vide Freitas do Amaral que, nas palavras do próprio, ditas na campanha para as presidenciais de 85, nasceu para a política no 25 de Abril, embora na altura já fosse crescidinho).

Apenas tive o privilégio de lhe apertar a mão por uma vez. Foi precisamente há 20 anos, em Moscovo, quando as nossas concepções do mundo eram parecidas. Hoje, mesmo com tantas diferenças entre os nossos pensamentos, deixa-me saudades. Resta o seu inimigo íntimo, Mário Soares, como último representante de uma geração de políticos como não há hoje.

* A bem dizer, no sentido estrito do termo, nem Hitler era fascista. Fascista era Mussolini. Enfim, retóricas de uma direita incomodada com as suas ideias.